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Meses antes da estreia de “The Puppy Episode”, episódio marcante e histórico do seriado “Ellen”, protagonizado por Ellen DeGeneres, já havia rumores de que a comediante e sua personagem assumiriam a sexualidade.
Essa expectativa aumentou à medida que a data de exibição se aproximava. Na época, um roteiro inicial do episódio vazou. E a própria DeGeneres “saiu do armário” na capa da Time algumas semanas antes da estreia do episódio. Quando finalmente chegou a hora de “The Puppy Episode” ir ao ar, o público mal conseguia esperar para que a personagem Ellen Morgan dissesse logo essas mesmas palavras.
Mas, ainda assim, eles tiveram que aguardar. No início do episódio, os amigos de Ellen ficam impacientes enquanto esperam que ela saia do banheiro.
“Ellen, você vai sair para fora ou não?”
“É, pare de nos sacanear e saia logo!”
Ellen coloca a cabeça para fora, por trás de uma porta, enquanto suas amigas ficam impacientes.
“Qual é o problema, eu tenho uma hora inteira!”, brinca.
O episódio de 1h segue cheio de piadas, com referências à sexualidade de Ellen. Até “The Puppy Episode”, a personagem raramente namorava e resistia ao romance, desviando-se das convenções de sitcom e frustrando os executivos da ABC, canal que exibia a produção.
Aliás, o título do episódio aparentemente veio de um comentário feito por um ex-CEO da Disney, Michael Eisner. Ele sugeriu que, se Ellen não saísse com homens, então talvez ela pudesse, no mínimo, adotar um cachorrinho.
Ellen Morgan nunca teve aquele cachorrinho, mas o episódio fez história quando ela se tornou uma das primeiras protagonistas de uma sitcom a dizer que é LGBTQIA+ na TV.
Embora “Ellen” tenha sido cancelada após cinco temporadas, “The Puppy Episode” ficou na memória. Sua influência foi analisada por acadêmicos em dezenas de artigos desde sua estreia, e abriu as portas para futuras comédias de sucesso, como “Will & Grace” e “Modern Family”, brindando outros protagonistas gays.
“Acho que o episódio realmente tocou em um ponto muito sensível neste país [Estados Unidos]”, disse Dava Savel, co-showrunner da quarta temporada de “Ellen”, à CNN. Ela escreveu dezenas de episódios de séries de TV em sua carreira. “Por isso que funcionou — porque foi real”, completou.
Como “The Puppy Episode” foi criado
A ideia de “The Puppy Episode” começou com DeGeneres. Antes do início da quarta temporada, a comediante convidou os roteiristas para jantar e anunciou que gostaria que sua personagem, Ellen Morgan, se assumisse. Os colegas de trabalho sabiam que DeGeneres era lésbica, embora ela ainda não tivesse se assumido no cenário nacional.
“Tudo começou com ela, querendo ser verdadeira consigo mesma“, contou Savel. “Imagine não ser capaz de ser quem você realmente é — ‘meu personagem é assim, mas eu sou assim’. Muitas vezes, os personagens se fundem com a pessoa que os interpretou e vice-versa.”
Depois de obter o sinal verde do executivo Dean Valentine, Savel e seus três co-roteiristas do episódio começaram a trabalhar, entrevistando outros roteiristas e membros do elenco que fossem LGBTQIA+. O objetivo é que contassem sobre suas próprias experiências ao se assumirem.
Foi uma aposta, mas a equipe estava animada com a ideia. No entanto, os roteiristas tinham alguns pedidos para a ABC: o episódio deveria ter 1h de duração e tinha que ir ao ar após o período em que as redes definem as taxas de publicidade para suas séries com base na audiência.
A revelação de Ellen não poderia soar como “gratuita”, disse Savel. Para que o momento parecesse natural, os escritores deixaram migalhas de pão durante toda a temporada até que Ellen finalmente confrontou sua sexualidade.
Há spoilers desde o primeiro episódio da temporada. Em uma cena, por exemplo, Ellen canta “I Feel Pretty” de “West Side Story”, parando pouco antes de chegar à palavra “gay” na letra. E durante toda a temporada, Ellen visita uma série de psiquiatras que investigam por que ela se sente tão insegura e infeliz, embora continue sem respostas.
É preciso conhecer Susan, uma mulher LGBTQIA+ assumida, interpretada pela atriz convidada Laura Dern, para que Ellen finalmente se sinta confortável nesse lugar. As duas têm química instantânea depois de se conhecerem no início do episódio.
Depois de admitir para sua mais nova terapeuta — dessa vez, interpretada por ninguém menos que Oprah — que ela tem sentimentos por Susan, Ellen corre para o aeroporto para ver seu interesse amoroso novamente, agora confortável e expressando algo que ela nunca foi capaz de dizer.
“Não consigo nem dizer a palavra”, fala Ellen na cena crucial do episódio, visivelmente frustrada com sua incapacidade de expressar seus sentimentos. “Por que eu não consigo dizer a palavra? O que há de errado, por que eu tenho que ter tanta vergonha? Tenho 35 anos e tanto medo de contar às pessoas.”
E então, finalmente, perto de um microfone em um portão de aeroporto, ela chega lá: “Susan, eu sou gay.”
Fãs elogiam o episódio
Mais de 42 milhões de pessoas assistiram ao episódio ao vivo, um aumento significativo na audiência em relação ao resto da temporada. O episódio também gerou reações negativas já esperadas, como “cartas, ameaças de morte”, disse Savel; e uma afiliada da ABC no Alabama se recusou a exibir — mas o ódio foi abafado por centenas de cartas de fãs gentis que disseram que o episódio lhes deu coragem para se assumir também.
Savel viu o impacto em primeira mão. Depois de ganhar um Emmy por co-escrever “The Puppy Episode” em 1997, ela foi aos bastidores com seus colegas e DeGeneres para encontrar a imprensa. No caminho para lá, eles foram recebidos pelos aplausos de pessoas que trabalhavam no evento. Isso ainda faz Savel chorar, conta. “Nós estávamos voando”, desabafou Savel.
Rachel Loewen Walker, professora assistente em estudos femininos e de gênero na Universidade de Saskatchewan, no Canadá, ainda mostra “The Puppy Episode” para seus alunos, muitos dos quais não sabiam que DeGeneres já estrelou uma sitcom.
“[O episódio] foi um momento crucial na representação queer na tela, especialmente por causa de seu contexto: Ellen Degeneres, que era muito querida pelo público, era gay”, disse Loewen Walker à CNN.
“Sua revelação tornou isso muito mais do que uma história na tela. Tornou-se real de uma forma que as sitcoms geralmente não têm permissão.”
“Ellen” terminou depois que a personagem se assumiu
Savel e outros roteiristas foram demitidos após a quarta temporada, quando “Ellen” entrou em uma nova fase. A quinta temporada estrelou uma Ellen recém-confiante enquanto ela saía para encontros, encontrava uma namorada séria e aproveitava sua vida como uma mulher assumidamente lésbica. Ao longo da temporada, a ABC colocou avisos parentais em episódios que apresentavam conteúdo queer, contra a vontade de DeGeneres.
A “nova” Ellen foi uma grande mudança da protagonista modesta que evitava ativamente se relacionar no início da série. As avaliações da nova temporada despencaram, e “Ellen” foi cancelada em 1998. A ABC nunca disse isso, mas Loewen Walker e outros que estudaram o impacto da série presumiram que o programa era “muito gay” para a rede na época.
DeGeneres retornou à TV em 2001, interpretando outro personagem gay em uma sitcom de curta duração chamada “The Ellen Show”, da CBS . Ela não interpretaria uma versão fictícia de si mesma novamente, em vez disso, lançou um talk show diurno de sucesso em 2003.
“Olhando para trás em ‘Ellen’, sinto como se [DeGeneres] tivesse carregado um fardo tão grande naquela época, por tantos futuros personagens LGBTQIA+”, disse Loewen Walker.
“Ellen” mudou a TV, mas ainda falta representação
“The Puppy Episode” fez algo que ainda é incomum na TV — pegou uma personagem querida, desenvolvida com cuidado ao longo de várias temporadas, e virou sua vida de cabeça para baixo. Ellen Morgan foi de garota desajeitada e charmosa, como a personagem era frequentemente descrita pelos executivos da rede, para uma mulher lésbica autoconfiante e carismática que não pede desculpas.
A influência de “Ellen” seguiu intacta. Quando “Will & Grace” estreou um ano depois de “The Puppy Episode”, o protagonista Will e seu amigo extravagante Jack não precisaram se assumir como Ellen — os personagens foram apresentados como gays já no piloto. Mais de uma década depois, o casal Mitchell e Cameron, e sua filha adotiva, Lily, encantaram o público como destaques no elenco de “Modern Family”, indicada ao Emmy.
Agora, há séries construídas inteiramente em torno de jovens personagens queer, como a série adolescente “Heartstopper”, um mega-sucesso da Netflix.
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Ennis e Jack de “Brokeback Mountain” • Reprodução
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“Azul é a Cor Mais Quente” • Divulgação
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“Hoje Eu Quero Voltar Sozinha” • Divulgação
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“A Garota Dinamarquesa” • Divulgação/ Universal Pictures
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“Me Chame Pelo Seu Nome” • Divulgação
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“Com Amor, Simon” • Divulgação
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“Alice Júnior” • Divulgação
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“Você Nem Imagina” • Divulgação/ Netflix
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“Vermelho, Branco e Sangue Azul” • Divulgação/Prime Video
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“Ru Paul’s Drag Race” • Divulgação
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“Modern Family” • Foto: Reprodução
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“Orange is the New Black • Divulgação/ Netflix
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“Please Like Me” • Divulgação/ ABC
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“Sense8” • Divulgação/ Netflix
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“Euphoria” • Divulgação/ HBO
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“Heartstopper” • Divulgação/ Netflix
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“Young Royals” • Divulgação
A representação lésbica na TV, no entanto, teve avanços um pouco menores desde “Ellen”, disse Loewen Walker. Personagens como Arizona Robbins em “Grey’s Anatomy” e muitas das mulheres de “Orange Is the New Black” eram lésbicas assumidas desde o momento em que foram apresentadas, e séries como “The L Word” estrelavam um elenco de personagens quase exclusivamente lésbicas.
Por outro lado, essas personagens eram frequentemente submetidas à violência e tragédia ou, no caso da série original de “The L Word”, eram criticadas por caírem em estereótipos ou conceitos errôneos ofensivos sobre lésbicas.
“Ainda é raro ver lésbicas naquele comercial de sitcom do horário nobre da televisão”, comentou Loewen Walker. “‘Modern Family’ realmente trouxe dois homens gays para nossas casas, mas não consigo pensar em uma lésbica ou mulher queer que tenha alcançado a mesma recepção familiar.”
DeGeneres recebeu essa recepção, no entanto, como uma apresentadora de talk show amada por milhões de espectadores por pegadinhas com celebridades e presentes generosos para pessoas comuns. Grande parte dessa boa vontade foi perdida quando os relatórios a acusaram de administrar um ambiente de trabalho tóxico. Ela abordou esse assunto em um especial de stand-up recente da Netflix, em que afirma que seria seu último.
Savel não trabalha com ela desde 1997, embora se lembre de DeGeneres sendo uma chefe “dura” e exigente. Mas “The Puppy Episode” sempre fará parte do legado de DeGeneres.
“Ela ainda está congelada para sempre neste episódio como uma campeã — para as pessoas gays e oprimidas dentro do armário”, pontuou Savel. “Você pode dizer que ganhou um Emmy e um Peabody. Mas, no caso de ‘Ellen, é mais do que isso. Você tem um país inteiro que se lembra de quando isso aconteceu.”
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